Relato da visita real
à Marinha Grande
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Philadelphia Stephens
Marinha Grande, 25 de Julho de 1788.
Na segunda-feira, 30, às quatro
horas da tarde, Sua Majestade e toda a Família Real chegaram aqui acompanhadas
pelas sua Donas, Açafatas, Confessores, Médico, Secretário de Estado (1), Camaristas,
Guarda-roupas, Capelães, Cirurgiões, Reposteiros, Moças da Prata, etc., e inúmeras
outras pessoas pertencentes aos seus séquitos. Os membros da Família Real foram
direitos à igreja, onde passaram alguns minutos em preces, posto o que entraram
nos seus coches novamente e vieram até nossa casa. A nossa Praça nesta ocasião
teve uma aparição brilhante. De cada lado da casa, os soldados pertencentes à
Guarda estavam em formação e, no lado oposto, em frente à porta da Fábrica,
todos os artífices pertencentes à manufatura no seu fato de trabalho, o qual não
admite nem casaco nem colete, com os cabelos arranjados e empoeirados, as
camisas lavadas e passadas a ferro, as mangas atadas ao meio com fitas vermelhas,
calças negras e meias brancas lavadas, o que, no seu conjunto, lhes dava uma
aparência uniforme muito boa.
Quando os coches entraram no portão,
a Família Real foi saudada com três Vivas
das pessoas da Fábrica e quando os respetivos membros saíram à porta de casa
foram recebidos pelo Arcebispo (o confessor da Rainha)(2), o meu irmão WIlliam,
os meus irmãos Lewis e Jedediah, o Visconde de Ponte de Lima (3) e Camaristas.
Esta sua humilde serva teve a honra de beijar a mão de Sua Majestade quando ela
entrou e recebeu um sorriso gracioso em troca. A mesma cerimónia foi repetida com
a Princesa (4) e cada uma das Infantas (5). À chegada das Donas e das Açafatas,
o Arcebispo apresentou-me a elas e recomendou-as à minha atenção particular.
Madame Arriaga é uma senhora muito esperta, agradável e de boas maneiras (6). Ela
é viúva e grande favorita da Rainha. Eu descrevo-a em particular supondo que já
ouviu muitas vezes o nome dela mencionado.
A Família Real foi imediatamente
para o andar de cima e, depois de ver os seus próprios apartamentos no primeiro
andar, Sua Majestade foi ao andar do sótão para ver o alojamento das suas
ajudantes femininas, relativamente ao qual expressou grande satisfação. Quando
acabou de ver os apartamentos, exprimiu o desejo de ver a Fábrica. Por isso, uma
procissão constituída pela Família Real e os seus ajudantes caminhou através da
Praça de casa até à Fábrica por entre muita gente. Quando entraram na Fábrica,
foram novamente saudados pelos manufatureiros com «Viva a Rainha, Viva toda a
Família ReaL) repetido três vezes. Os membros da Família Real sentaram-se num pavilhão
preparado para a ocasião coberto de repes verde e de tafetá carmesim, onde passaram
cerca de meia hora a divertirem-se vendo as pessoas a trabalhar. A Princesa,
com receio de estar perto do calor tão pouco tempo depois de acabar os banhos
nas Caldas, imediatamente ao entrar na Fábrica chamou-me e desejou que eu lhe
mostrasse o caminho para o andar de cima até ao armazém de empacotamento. Por
isso, ordenei que lhe pusessem uma cadeira ao lado da janela, onde se divertiu
a admirar avista e a falar comigo e com D. José Lobo, Camarista dela, num
estilo familiar muito agradável durante o tempo que a Rainha ficou em baixo no
pavilhão. Sua Majestade, depois de satisfazer a sua curiosidade de ver as
pessoas a trabalhar e de as aplaudir todas muito, veio para o andar de cima e examinou
tudo muito atentamente.
Depois de passarem algum tempo aqui,
foram ver outros departamentos da Fábrica. Na sala de cortar e pintar flores
(7), sentaram-se algum tempo a admirarem o trabalho, e a Rainha e a Princesa
fizeram várias perguntas acerca dos nossos artesãos, etc. Depois de terem visto
tudo o que pertencia à Fábrica, foram para o jardim, onde tinham sido colocadas
cadeiras em diferentes locais para descansarem. Aqui divertiram-se até às Ave
Marias, altura em que se retiraram para a casa e beberam chá.
Logo que acabaram o chá, foram para
o teatro, onde a galeria estava elegantemente preparada para as receber, coberta
de damasco carmesim, a parte da frente ornamentada com cortinas caídas em
grinaldas, com as armações cobertas de veludo carmesim com franjas douradas. Ao
lado direito da Galeria Real ficava uma galeria lateral para o Arcebispo e, do
lado oposto, do lado esquerdo, uma galeria similar para as Donas e Açafatas,
por trás da qual havia espaço suficiente para todo o resto das ajudantes
femininas verem a peça. A plateia estava destinada às pessoas pertencentes ao
séquito que não eram Camaristas ou criados imediatos, como também para os
senhores desta vizinhança e os Ministros da Cidade de Leiria. Também havia um
camarote privado por baixo da Galeria Real para as principais senhoras de
Leiria que estavam aqui para ver os entretenimentos.
Logo que Sua Majestade entrou na
galeria, a orquestra, que consistia em quatro violinos, duas trompas e dois violoncelos,
começou a abertura, durante a qual a Família Real admirou o desenho e a pintura
da cortina. Ela representa uma senhora sentada numa grande árvore com as Armas
de Portugal ao seu lado e um jovem vestido de jardineiro a esvaziar uma
cornucópia no seu regaço com o emblema da Abundância e da Indústria. A expulsão
da Indolência é representada por um pedinte que é um homem saudável, forte e
com ar cordial coberto de farrapos, com os bolsos cheios de pão e com um bastão
na mão que serve de arma ofensiva ou defensiva como melhor se adequar às suas
intenções. Ele passa lançando um olhar de desprezo à Indústria. A explicação na
parte de baixo é composta pelas seguintes palavras: «Lusitânia pelas Artes
recebe da Indústria Abundância e desterra a Mendicidade». Por cima da parte da
frente do palco, duas figuras femininas representando a Tragédia e a Comédia levantam
nas mãos um placa com os seguintes dizeres, «Vinde e descansai porque
trabalhais», aludindo aos motivos pelos quais o teatro foi construído.
Quando acabou a abertura, a cortina
foi levantada e a tragédia de Sésostris
começou (8). Esta peça deve-se ao particular desejo de Sua Majestade e eu tenho
de fazer justiça aos nossos jovens dizendo que, embora não tenham tido duas
semanas para a estudar, representaram os seus papéis extremamente bem. Entre os
atos, houve várias danças e pantominas durante as quais a Família Real foi
servida com gelados de vários tipos (9) e outros refrescos. Depois da peça, a
farsa Esganarello foi representada
com grande aplauso.
Assim que os divertimentos teatrais
acabaram, a Família Real regressou à casa onde encontraram jantar na mesa e a Praça
iluminada com cerca de duas mil luzes, dispostas em quadrícula, penduradas da seguinte
maneira [diagrama], que cobriam todas as paredes dos edifícios entre as
janelas, com um obelisco no meio da Praça coroado com uma esfera no topo. Dois
carros triunfais com música foram puxados em redor da Praça e tocaram sob as
janelas durante o tempo do jantar e, logo que a Família Real se levantou da
mesa, foi lançado um bonito fogo-de-artifício que os divertiu durante cerca de
um quarto de hora, altura em que se retiraram todos para os seus apartamentos e
um silêncio total continuou toda a noite.
Os membros da Família Real jantaram
todos juntos na nossa sala grande numa mesa com vinte e dois palmos de comprimento
e onze de largura. A Rainha sentou-se no centro de um dos lados da mesa, com a
Princesa à sua direita e a Infanta D. Carlota à sua esquerda, a Infanta D.
Mariana à esquerda de D. Carlota. No outro lado da mesa, em frente à Princesa
sentou-se o Príncipe (10) com o seu irmão D. João à sua direita em frente a D.
Carlota. O seu costume em Lisboa e nas Caldas é jantar e cear cada um no seu
apartamento; em viagem, em geral eles comem juntos e, nesta ocasião, eles
pareciam muito felizes na companhia uns dos outros.
A mesa e os aparadores foram
cobertos com um pano cor-de-rosa; no centro da grande mesa estava um ornamento de
vidro muito elegante feito aqui e representando um templo. O desenho foi feito
pelo copeiro do Marquês de Marialva, o qual teve a direção de toda a doçaria
com a assistência do Doceiro da Rainha o qual se ocupou principalmente da
gestão dos gelados, dos quais havia uma grande variedade e muito bons. O
costume é pôr tudo na mesa ao mesmo tempo, carne, fruta, doces, etc. Todos os
pratos da cozinha são servidos sob a direção do Cozinheiro Principal de Sua
Majestade, o qual tinha trinta e três cozinheiros para trabalhar para ele.
Quando a Família Real se levantou da
mesa, as Donas e Açafatas e a sua humilde serva sentaram-se. É costume em
viagens os Camaristas e os nobres sentarem-se à mesa depois da Família Real. É
então chamada Mesa de Estado, mas, nesta ocasião, foi julgado mais conveniente
que as senhoras ficassem no andar de cima e a Mesa de Estado para os Camaristas
e o Secretário de Estado foi colocada na nossa sala de jantar no rés-do-chão.
Esta mesa era um pouco mais pequena do que a Mesa Real. Tinha uma pirâmide de
vidro no meio decorada com doces e a mesa estava coberta por um pano azul. O
Arcebispo tinha uma mesa separada no seu apartamento para si e o companheiro
Padre Rocha, Provincial da Ordem de S. Domingos (11), como tinham outros pertencentes
a diferentes departamentos.
No extremo superior da nossa grande
álea no jardim havia uma barraca de madeira, com oitenta palmos de comprimento
e trinta de largura, com tapeçaria pendurada e coberta de pano de vela. Nesta
sala, havia uma mesa contendo cerca de cinquenta ou sessenta pessoas, onde o
meu irmão recebia os Cavalheiros da Província, Ministros e Câmara de Leiria e
toda aquela companhia que não podia ser admitida nas outras mesas.
Os membros da família Real e as suas
ajudantes femininas estavam todos alojados na nossa casa a qual, nesta ocasião,
foi chamada de Paço ou Palácio, o Arcebispo na casa ao lado direito do portão e
os Camaristas e Secretários de Estado, etc. na melhor casa do lugar, onde camas
muito excelentes foram feitas para eles. Os criados de libré, os cocheiros e os
soldados com as suas bestas estavam todos bem alojados sob os telheiros de
madeira, com cozinhas e salas de jantar de acordo com os seus vários graus, um
abastecimento abundante do melhor bife, arroz e pão que se podia arranjar no
país e tanto vinho de Aljubarrota quanto decidissem beber. Apesar disto, para
sua honra, não devo omitir de dizer que ninguém ficou bêbado nem aconteceu a
mais pequena perturbação durante todo o tempo em que eles estiveram aqui, e,
como uma notável prova da sua honestidade, posso assegurar que nesta e na
ocasião anterior de eles estarem aqui, nós não perdemos nada a não ser duas colheres
de sobremesa que eu suponho que se perderam ou que foram deitadas fora com o lixo
da cozinha, não sendo um objeto para ser roubado onde havia a oportunidade de roubar
coisas de muito maior valor.
Pode ter uma ideia mais ou menos do
número de pessoas pertencentes à comitiva do Sua Majestade quando lhe disser que
nós tínhamos estábulos providos com palha e cevada para seiscentas bestas excluindo
as tropas. Para além das pessoas pertencentes à Corte, havia a confluência de
todo o lado em redor desta vizinhança os quais a curiosidade tinha juntado para
verem a sua Soberana, com a qual eles pareciam muito agradados.
Na terça-feira de manhã, o Infante
D. João levantou-se às quatro horas e levou alguns ajudantes para ver as suas propriedades
em Monte Real, o campo de Leiria e os trabalhos na Foz da Vieira a duas léguas
de distância (12). Ele examinou tudo muito minuciosamente e regressou muito agradado
com a sua excursão entre as oito e as nove horas. Por esta altura, a Rainha e a
Família Real estavam levantados e vestidos. Tomaram o pequeno-almoço nos seus
vários apartamentos composto por chá e tosta inglesa, posto o que o seu altar
de viagem foi instalado no quarto de vestir da rainha e foi celebrada missa por
um dos seus capelães.
Estando isto feito, eles divertiram-se
a passear pela casa e a conversarem de forma muito afável com qualquer pessoa com
quem se cruzassem.
Entre a uma e as duas horas, o
almoço foi servido da mesma maneira que o jantar precedente. Durante o café, aprontaram-se
os coches, altura em que foram dar um passeio com alguns ajudantes para verem a
famosa e antiga cidade de Leiria. Depois de passarem por baixo de um Arco do Triunfo
erigido pela Câmara à entrada da cidade, foram direitos à Sé Catedral onde
foram recebidos com as usuais cerimónias pelo Bispo. Da primeira vez que iam a
alguma igreja, era costume o Bispo ou o Padre Principal pertencente à igreja
receber a Rainha à porta. Desta maneira ela caminha com a Família Real para o
Altar-mor onde são colocadas almofadas de veludo para se ajoelharem. Durante as
suas preces privadas, é cantado um curto Te
Deum, acompanhado pela música que a igreja puder pagar. Isto acabado, retiram-se
da mesma maneira como entraram.
Depois de verem a catedral, foram no
seu coche para o Palácio do Bispo, o qual é muito espaçoso e bem mobilado. Está
situado numa elevação e tem uma vista muito bonita sobre a cidade. As ruínas de
um velho castelo mouro, o rio e as terras adjacentes, viram tudo com grande
prazer e, depois de terem partilhado uma merenda elegante, deixaram o palácio e
foram para o Convento das freiras da ordem dominicana. Depois de verem a
igreja, entraram no Convento e examinaram todos os cantos com satisfação.
Deixaram as pobres freiras altamente impressionadas com gratidão, não apenas
pela honra da visita, mas também pela graciosa oferta de Sua Majestade de vinte
moidores que ela deixou para o seu sustento. Foi também ordenado que dessem trinta
moidores aos pobres da cidade. À porta do Convento, entraram nos seus coches
vastamente deliciados com a Cidade de Leiria, a qual, nesta ocasião, fez uma
grande figura, estando as casas todas pintadas de branco, as ruas cobertas de
areia e as janelas com cortinas penduradas da mesma maneira que em dias de
grande procissão. Por altura das Ave Marias, todos chegaram aqui outra vez em
segurança.
O Príncipe e o seu irmão deixaram
Leiria algum tempo antes da Rainha. Fizeram parte do caminho numa liteira, depois
montaram os seus cavalos e foram ver a Fábrica da Madeira e a Floresta (13),
que ficam perto da nossa casa, mas chegaram aqui ao mesmo tempo que a Rainha.
Depois de beberem chá, foram outra vez ao teatro com as mesmas cerimónias que
no dia precedente e viram a comédia Dom
José de Alvarado, Criado de Si Mesmo. É uma peça para rir e foi representada
com muito humor. No fim do segundo ato, foi tocado um solo de violoncelo por um
jovem de Leiria que está a estudar física em Coimbra, como um curioso. Ele toca
muito bem e a FarnI1ia Real aplaudiu muito a sua interpretação. Entre os outros
atos, houve várias danças e pantominas, concluindo-se tudo com a farsa Letrado Avarento.
O teatro estava iluminado com cera e
os vestidos em cada noite eram novos de acordo com os papéis. Os atores cumpriram
com honra e receberam aplauso universal, não apenas da Família Real, mas de
toda a audiência a qual achava impossível que um rude local de província
tivesse produzido tão bons atores. A surpresa aumentou muito quando souberam
que a maior parte nunca tinha estado a mais de duas ou três léguas da sua paróquia
e que todos trabalhavam na Fábrica. Eles representavam apenas para seu
divertimento, o que é muito diferente dos teatros públicos onde os atores não
têm outro emprego para além de estudarem as suas partes e toda a sua subsistência
depende da opinião favorável do público.
Tendo acabado os divertimentos do
teatro, a Família Real regressou à casa, onde o jantar, iluminações, carros triunfais
e fogo de artifício concluíram as diversões da mesma maneira que na noite
precedente.
Na manhã seguinte, quarta-feira, 2,
a Família Real levantou-se cedo, vestiu-se e ouviu a Missa da mesma maneira que
já foi mencionada, durante a qual tudo foi aprontado para a sua partida entre
as oito e as nove horas. O Príncipe e a Princesa (14) entraram no seu coche e
foram direitos para as Caldas, tendo receio de parar e almoçar na Nazaré por causa
da varíola que andava por ali, sendo duvidoso se o Príncipe já tinha tido essa
doença ou não. Ao despedir-me de Sua Alteza Real, eu beijei a sua mão e
agradeci-lhe a honra que nos tinha dado com esta visita e desejei-lhe boa viagem.
Em troca, ela deu-me um abraço, agradeceu-me pelos divertimentos hospitaleiros
que tinha recebido e desejou-me saúde e felicidade. O meu irmão despediu-se do Príncipe
da mesma maneira e foi com ele até à porta do coche.
Ao passarem pelo portão, foram outra
vez saudados com três Vivas. Sua Majestade
e o resto da família Real ficaram durante uma hora depois do Príncipe e da
Princesa terem partido. Quando a Rainha deixou o seu apartamento, eu beijei-lhe
a mão e ela agradeceu-me pela distração que lhe tínhamos dado, uma expressão
que indicava que estava agradada com tudo o que tinha visto. Depois, despedi-me
das Infantas D. Mariana e D. Carlota. A primeira deu-me um abraço e repetiu os
seus agradecimentos da mesma maneira que a Rainha e a Princesa.
No fundo da escada, o Administrador
da Fábrica, com dois Contabilistas e o Pagador-Mor, foram apresentados e beijaram
a mão de Sua Majestade, que os recebeu muito graciosamente e aplaudiu muito a
indústria das nossas pessoas, a boa ordem e gestão da Fábrica e a harmonia que
subsistia entre as pessoas que pertenciam à Manufatura. Depois, eles fizeram a
cerimónia com o Infante D. João e as duas Infantas, que também os receberam muito
graciosamente. No vestíbulo estavam o Bispo de Leiria e os seus ajudantes assim
como os Ministros e a Câmara de Leiria que se despediram da mesma maneira.
O meu irmão acompanhou Sua Majestade
à porta do coche onde ela repetiu outra vez os seus agradecimentos pela sua
hospitalidade e partiu entre aclamações de um grande número de pessoas que
permaneceram penetradas com amor e respeito pela sua Soberana e toda a Família Real,
pelo seu comportamento agradável e afável durante a sua estadia neste lugar. Da
nossa casa foram para a igreja.
Após alguns minutos de oração ali,
foram até à fronteira da Floresta e, daí, para a Nazaré onde prestaram as suas
devoções habituais a Nossa Senhora (15), almoçaram e foram à praia ver as redes
a serem puxadas com peixe, e daí foram para as Caldas onde dormiram nessa noite
e descansaram no dia seguinte, quinta-feira.
Na sexta-feira, 4, regressaram a
Lisboa onde falaram com altos encómios do entretenimento que receberam aqui. Em
suma, o meu irmão atingiu aquilo de que mais ninguém no reino se pode orgulhar
que é a honra de receber a Família Real e toda a corte durante dois dias e de
ter dado satisfação universal a todos, da Rainha até aos moços de cozinha e aos
rapazes dos estábulos. A primeira vez que Sua Majestade veio aqui não foi tão
surpreendente, porque a curiosidade de ver a Fábrica de Vidro era supostamente
o motivo, mas que ela tenha vindo uma segunda vez e tenha dormido duas noites
na casa de uma pessoa privada, um inglês e protestante, é uma coisa que nunca
entrou na ideia dos portugueses e que atingiu todas as pessoas com estupefação.
Sua Majestade gostou tanto da sua situação que lamentou partir e ficaria por
mais tempo se não fosse a necessidade inevitável de regressar a Lisboa. Tinham
já sido passadas as ordens para a mudança dos animais na estrada e para tudo
estar pronto para a receção na Praça do Comércio (16), e era agora demasiadamente
tarde para retroceder. Ela deixou cem moidores para serem distribuídos entre o
povo da Fábrica e vinte moidores para os pobres da paróquia.
Logo depois da partida de Sua
Majestade, a nossa casa foi aberta para toda agente que a quisesse ver. Tínhamos
uma grande companhia de Leiria e da vizinhança que jantaram connosco na Mesa Real
e, à noite, as mesmas iluminações foram repetidas. A tragédia de Sésostris, com os mesmos vestidos novos,
danças e pantominas como na primeira noite, foi representada com aplauso
universal perante uma audiência numerosa, sendo dada entrada livre (como é
nosso costume para com todas as pessoas de todos os níveis e denominações). Depois
da peça, a nossa companhia jantou connosco na Mesa Real, bebeu à saúde de Sua
Majestade e concluiu o nosso festival de três dias com não pequena satisfação
para nós próprios e para todos os nossos vizinhos, sendo tudo isso uma visão
que eles nunca tinham visto antes.
Alguns dias antes da chegada de Sua
Majestade aqui, o Chefe da Casa Real veio com o Armador que trouxe cinco camas
para a Família Real e cortinas para as portas e janelas dos quartos principais.
Elas eram de damasco carmesim com renda dourada e cortinado de veludo carmesim
com franjas douradas. A cama do Príncipe e da Princesa era muito grande e
elegante. A cabeceira e os pés da cama eram feitos de ferro forjado, as tábuas
eram pintadas de branco com uma cobertura carmesim e um damasco carmesim. A
cabeceira estava coberta com damasco carmesim, por cima da qual havia uma
armação coberta com a mais bela musselina fina trabalhada com pequenos pontos
de prata, as bordas cortadas com rendas de um elegante louro prateado em dobras
muito espessas. O primeiro colchão era de pano de linho muito bom, o qual eles
trouxeram vazio e encheram aqui com palha de centeio. Sobre este havia dois
colchões de linho irlandês muito bom, cheios de lã. Estes eram cobertos com um
lençol de pano de linho muito bom que era puxado com toda a força por quatro
homens e entalado por baixo do colchão de palha. Depois, um lençol de linho
irlandês muito bom era entalado da mesma maneira. Duas almofadas achatadas eram
depois colocadas uma sobre a outra, cheias de lã e forradas da mesma maneira
que os colchões. As fronhas eram lisas, mas de linho melhor do que o dos
lençóis. O lençol de cima feito de bom linho irlandês era então colocado com
uma coberta de damasco. Por cima disto, em vez de um cobertor, estava uma coberta
branca delimitada por uma fita. Esta coberta era para ser tirada ou posta
conforme agradasse. Por cima disto, havia outra coberta de damasco carmesim que
também era muito bem entalada debaixo do colchão de palha, e o conjunto era
coberto com a mesma musselina elegante e com pontos de prata como a cabeceira, com
um folho que ia do colchão de cima até ao chão, com o conjunto delimitado por
renda. A grande almofada era então colocada na cama, com as extremidades atadas
por grandes nós da melhor fita inglesa. Uma coberta de tafetá carmesim era
depois lançada sobre o conjunto para manter o pó afastado.
A cama da Rainha era igual à da
Princesa, mas mais pequena, e os colchões, almofadas e lençóis eram os mesmos que
já foram descritos. Em vez de uma coberta de pano cor de laranja, o dela era
branco, a cabeceira estava coberta de damasco carmesim, sem qualquer outro
ornamento para além de ser preso com renda de seda da mesma cor.
As camas das Infantas D. Mariana e
D. Carlota e do Infante D. João eram as três em pau-brasil, com os colchões, almofadas
e cobertas iguais às da Rainha, exceto a Infanta D. Carlota, cuja cama era feita
no estilo inglês. Os lençóis que ela trouxe de Espanha eram notavelmente finos,
mas lisos, a almofada era redonda com uma fronha câmbrica delimitada em cada
ponta por uma musselina florida muito fina. A colcha era de cetim branco acolchoada
à inglesa, sobre a qual se estendia uma coberta de tafetá carmesim para evitar
o pó.
A cama tinha suporte e rede para
mosquitos. As camas da Rainha e da Princesa tinham dosséis e cortinas que lhes pertenciam,
mas Sua Majestade, lembrando-se muito graciosamente de que os nossos quartos
estavam elegantemente acabados com estuque, os dosséis não podiam ser suspensos
sem pôr ganchos no teto, por cuja razão ela deu ordens positivas para que as
camas fossem feitas sem cortinas porque ela não consentiria de maneira nenhuma
que a mais pequena coisa fosse feita para estragar a casa que ela muitas vezes admirara
pela sua limpeza. Ela aproveitou educadamente todas as oportunidades para elogiar
tudo. Depois do almoço, ela disse-me que tinha comido muito bem, que tudo
estava extremamente bom.
O Marquês de Pombal (17) era a única
pessoa que trazia a sua cama, com a exceção dos cinco da Família Real. Tudo o
resto foi proporcionado por nós, o que no seu conjunto deu algumas centenas que
nós obtivemos de Leiria e das suas vizinhanças, sendo impossível obter um
número tão grande neste lugar. Os criados de libré e os soldados ficaram deliciados
por descobrirem que tinham camas decentes para dormir. Era um luxo de que
desfrutavam pela primeira vez desde que tinham deixado Lisboa a 3 de maio.
Durante todo o tempo da sua estadia nas Caldas, tinham sido obrigados a dormir
em palha solta nos estábulos, no chão ou onde quer que encontrassem um lugar
para se deitarem, tal é a dureza que estas pobres pessoas sofrem quando viajam
com a Corte e é provavelmente a razão porque cometem muitos ultrajes, mas eu
devo repetir outra vez que o bom comportamento deles aqui lhes dá direito a
todas as indulgências.
A Família Real é servida à mesa
pelos Camaristas e Reposteiros. Quando a Rainha entra na sala de jantar, é presenteada
pelo seu Camarista ajoelhado com água e uma toalha para lavar as mãos e, depois
de isto estar feito, senta-se e o Camarista fica de pé atrás da sua cadeira. A
mesma cerimónia é observada com o resto da Família Real. Depois, o Camarista
trincha a comida que eles escolherem comer e, quando é preciso alguma coisa dos
aparadores, os Reposteiros levam-na ao Camarista que a põe em cima da mesa. Quando
é pedido água ou vinho, o Reposteiro tira a rolha e leva a garrafa e um copo numa
salva ao Camarista, o qual, ajoelhado, verte o líquido e o apresenta à Rainha,
pondo-se na mesma atitude para receber o copo quando ela acabou de beber.
Quando o jantar acaba, lavam
novamente as mãos e retiram-se para beber café. Eles são muito exigentes a
respeito da água que bebem a qual é trazida de Lisboa em garrafões, alguns do
Chafariz da Praia (18) e alguns da Ajuda. Um dos Reposteiros, que era o Provedor
das Águas, reparei que não tinha mais nada que fazer do que guardar a chave dos
armários de água e garantir que havia sempre uma garrafa cheia de água no
aparador e numa mesa em cada um dos apartamentos. A garrafa de Sua Majestade
era distinta por ter uma fita branca atada em torno do gargalo. O clarete era o
vinho mais usado e mesmo assim só numa quantidade muito pequena.
Quanto a Sua Majestade, achei-a
muito melhorada no seu aspeto desde que aqui estivera no ano de 1786, estando agora
mais gorda, com melhor cor e com uma expressão mais alegre. A Princesa é algo
mais magra, mas mesmo assim mantém um aspeto agradável. A Infanta D. Mariana é
mais gorda e, embora não seja elegante, tem algo de agradável e majestoso na
sua aparência. A Infanta D. Carlota parece igual em relação a quando esteve
aqui na última vez, viva mas muito pequena, nem o seu aspeto indica que ela
venha a crescer muito mais. Já vi crianças tão grandes com nove anos de idade;
ela agora tem catorze.
A Rainha, a Princesa e as Infantas
estavam vestidas de seda, e cada dia tinham um vestido diferente. Sua Majestade
usa o cabelo entrelaçado e levantado na parte da frente terminando numa peruca
lisa e apertada, na parte de trás terminando num saco como o dos senhores. Ela
usa um chapeuzinho fora de moda com a aba virada para cima que leva na mão ou debaixo
do braço. É raro pô-lo na cabeça a não ser quando anda a cavalo. A Princesa
tinha o cabelo frisado à frente e apanhado atrás. Ela usava um chapéu grande à moda
inglesa, em redor de cuja coroa havia uma fita com um nó de um lado. As duas Infantas
estavam quase ao mesmo estilo da Princesa. Todas tinham cintos largos de veludo
preto em torno da cintura, apertados à frente com dois monstruosamente grandes
medalhões de aço, que acredito que fossem ingleses.
As Donas e Açafatas não são
autorizadas a usar vestidos de andar a cavalo ou chapéus, mesmo que a viagem
seja longa e o vento, o sol e a poeira sejam incómodos. Elas são obrigadas a
viajar em liteiras vestidas da mesma maneira que nós ingleses fazemos nas
noites de sexta-feira quando vamos para a Sala Comprida (19). Ninguém é
autorizado a sentar-se na presença de qualquer membro da Família Real, exceto o
Arcebispo que é confessor da Rainha. Os Camaristas, quando estão cansados de
estar de pé, podem descansar prostrando-se sobre um só joelho enquanto
conversam ou jogam às cartas. As Donas e as Açafates têm por vezes autorização
para se sentarem no chão.
A despesa deste entretenimento foi
de cerca de uma quinta parte do que é calculado pelas pessoas em geral, apesar
de o meu irmão ter amplamente recompensado os Cozinheiros e os Copeiros pelo
seu trabalho. Antes de chegarem, tudo estava pronto para eles de tal forma que,
quando chegaram, não tinham mais nada a fazer à exceção de começarem o seu
trabalho. Não pedimos nada da Casa de Sua Majestade a não ser os damascos de
pendurar nas portas e janelas e os grandes cobres de uso na cozinha. Louça, Damasco,
Mesa e Pratos, nós tínhamos o suficiente para o serviço das várias mesas. Tendo
tido alguma razão para esperar esta visita no ano passado, nós arranjámos um
grande abastecimento de facas, garfos e colheres de prata de Inglaterra, da
melhor qualidade e da moda mais nova, tudo isto sendo cuidadosamente preservado
para a próxima ocasião, que provavelmente será no próximo ano porque a Família Real
tem a ideia de ir a Coimbra.
Aconteceu uma pequena anedota que
quase não vale apena mencionar a não ser como prova da resolução determinada de
Sua Majestade de se agradar com tudo o que ela encontrasse. A Rainha e a
Princesa têm cada uma delas uma chaleira, uma chávena e um pires particulares
de que sempre fazem uso. A Princesa trouxe o conjunto dela. A criada que empacotou
as coisas perguntou à Rainha se devia empacotar também o conjunto dela, ao que
Sua Majestade disse «Não», porque sabia muito bem que Stephens tinha
proporcionado tudo o que era preciso e estava determinada a só usar o que pertencesse
a esta casa.
Notas:
1- Visconde de Ponte de
Lima.
2- Inácio de São
Caetano, arcebispo de Tessalónica.
3 -Secretário de Estado
dos Assuntos Internos e primeiro-ministro em exercício.
4- D. Benedita, princesa
do Brasil, irmã de D. Maria I e mulher do príncipe D. José.
5 -D. Mariana (irmã de
D. Maria I) e D. Carlota Joaquina (mulher do príncipe D. João).
6- Madame Arriaga era
uma açafata sénior e a ajudante feminina favorita de D. Maria I.
7- A sala onde o vidro
era cortado, gravado e pintado com flores.
8- Sésostris (1695) de
Hilaire Bernard de Longepierre (traduzida para português).
9- Gelados e sorvetes.
10- D. José, príncipe do
Brasil, filho mais velho de D. Maria I.
11- Padre Rocha, frade
dominicano, confessor e companheiro de lnácio de São Caetano.
12- Foz da Vieira, foz
do rio Liz, onde engenheiros estavam a remover areais, que estreitavam o canal
de entrada.
13- A serração de
propriedade estatal e o pinhal real de Leiria.
14- O. José e O.
Benedita, príncipe e princesa do Brasil.
15- Nossa Senhora da
Nazaré, com a respetiva capela.
16- Uma receção para dar
as boas-vindas à Rainha quando o bergantim regressasse à cidade.
17- 2.º marquês de
Pombal, cavalheiro do quarto de dormir.
18- Uma das fontes
altamente decoradas de Lisboa que abasteciam o povo de água.
19- Sala de baile das
Salas de Reunião Britânicas, em Lisboa.
IN: Roberts, Jenifer, 2012, D. Maria I – A Vida Notável de Uma Rainha
Louca, Alfragide, Casa das Letras
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